Meu amor:
Falaste-me de
Abril…
Que te direi…
Apenas que
sonhei!
Ai Abril, Abril…
Sabes, nesse dia,
eu, com apenas onze anos, cheguei a casa, vinha da escola, e lembro-me, num
velho armário de tábuas de pinho estava um pequeno rádio, transístor, que
naquela altura ainda soava a novidade, um pequeno rádio que lembro como se fora
hoje: plástico laranja por trás, metalizado prata á volta, e negro pela frente.
Tocava músicas
marciais.
Minha mãe
disse-me:
-Houve uma
revolução em Lisboa!
Revoluções, eu
conhecia da história.
Eram feitos heroicos
sempre a bem do povo.
E eu queria o bem
do povo, e gostava da história heroica que me contavam.
Ai meu amor! Eu
estava com a história!
“Aqui comando geral do movimento das Forças
Armadas…”
Algo que começara
as três da manhã só as sete da tarde eu sabia.
Tanto que eu não
sabia!
Foi o mundo que
se abriu!
Foi o saber que
aqueles que me ensinaram a venerar não passavam de ditadores!
Gente que não
deixava pensar, que não deixava ser, que não deixava amar!
“Vi abrir-se a minha terra/ como um cravo de
ternura…”
Acreditava-se!
Acreditava-se na
felicidade, acreditava-se na liberdade.
Eu, nos meus onze
anos, eu que sempre vira a fraternidade e a solidariedade como grandes valores,
percebi que havia gente a engordar á custa de outros que da miséria faziam o
seu dia-a-dia.
Percebi que nem
todos os homens tinham a mesma justiça, percebi que muitos não estavam com as
suas famílias, seus pais, suas mães, porque um estranho poder não deixava.
Ai, meu amor!
Quanto me deram
para sonhar em Abril!
Deram-me amor,
esperança, mas também ódio, raiva, revolta e coragem!
Tanto sentimento
contraditório!
Deram-me a
democracia e disseram-me que todas as pessoas são iguais em direitos e deveres!
E eu acreditei!
Eu acreditei! …
Disseram-me que
os homens e as mulheres eram pessoas!
Que nenhum tinha
prevalência sobre o outro, e eu acreditei.
E de tudo isso
fiz a minha batalha, a minha luta, a minha honra!
Juntei-me aos
mais velhos que me contavam as histórias da repressão, ouvi-os.
Quis continuar a
luta contra os “alguns” privilegiados e sonhei o mundo perfeito.
Quanta desilusão,
amor.
Quanta desilusão!...
Acreditei que
cada um poderia ter mais importância quanto mais desse ao seu povo.
Acreditei que
conhecer e participar no crescimento do povo era mais importante.
Desilusão!...
Não pilhei, não
roubei!
Não fiz nada por
mim!
Só o meu
pensamento enriqueceu, mas isso não paga o pão.
Acreditei na
cultura, na história, na filosofia!
Mas acreditei
mais na poesia, no romance…
Perdia vida!
Ai, amor!
Falar de Abril!
Perdi-lhe o
significado!
Os vampiros andam
por ai!
Os caciques,
escapam da justiça, o povo continua arreigado às suas crenças e á sua
ignorância.
Cada um vota no
seu umbigo e não num ideal.
Ai, Abril, amor!
Que sonho que
passou, que não há mais nessa bola colorida entre as mãos de uma criança.
“Só há liberdade a sério quando houver
A paz, o pão, habitação, saúde, educação.
Só há liberdade a sério quando houver
Liberdade de mudar e decidir
Quando pertencer ao povo o que o povo
produzir”
Entretanto temos
os vampiros.
Entretanto temos
os pesadelos de não saber se amanhã temos pão
De saber se
amanhã não teremos que queimar os nossos livros
Ai meu amor,
Abril deu-me esperança e deu-me mágoa.
Deu-me liberdade
de amar, mas roubou-me o direito de amar.
Abril colorido de
flores, de vermelhos cravos.
Numa pomba e num
ramo de oliveira te quero dar a guerra!
Contra a ignorância,
contra a pequenez de espírito, contra o analfabetismo.
Em suma contra
todo o campo de batalha em que o povo continua reduzido e escravo a bem de
alguns.
VIVE ABRIL.
Vicente de Sá
2006